terça-feira, 6 de outubro de 2015

Um mundo que se cruza e se encontra

A possível história do seu vestido de noiva

Uma das lembranças mais doces da minha infância são as tardes que passei na Rua São Caetano em São Paulo, conhecida como rua das noivas. Isso foi mais ou menos em 1990, quando a confecção de vestidos de festa ainda não havia sido invadida pelos vestidos prontos coreanos, chineses, espanhóis e etc... Todos os vestidos de noiva eram encomendados sob medida, desenhados como o grande projeto de vida que deveriam ser, costurados em camadas e bordados a mão com todo cuidado e carinho.

Para qualquer menina de 5 ou 6 anos, era como viver em um conto de fadas. Tecidos, lantejoulas, manequins, noivas, arranjos de cabelo. Aos sábados, a loja fervia de futuras esposas provando cada uma das etapas. Tudo isso, eu presenciava eufórica e encantada em uma loja de esquina da São Caetano chamada Alvorada Modas, que pertencia ao meu avô.

Meu vestido - quando a tradição não sobrevive à modernidade
Nessa época (e muito antes disso na verdade), a rua já era o maior conglomerado desse tipo de comércio no Brasil, com mais de 60 lojas que vestiam mais 70 mil noivas por ano e durante muito tempo, ditou a moda dos altares paulistas. E se você se casou em São Paulo, principalmente, entre as décadas de 40 e 90, a chance dessa história ser parte da sua história é 90%. Com certeza, você foi até a estação da Luz, andou por essas lojas até encontrar alguma que transformasse panos em seu sonho de Cinderela.

Depois, eu cresci, a loja do meu avô fechou em 2007, casei com um vestido pronto comprado na Avenida Rebouças - uma grande ironia dos novos tempos, principalmente, porque a origem dessa rua encantada, que pode ter feito parte da sua vida, faz parte da minha origem também.

 Essa história poderia perfeitamente começar com ERA UMA VEZ...

Antakya ou Antioquia - às vezes turca, outras síria
Era uma vez, uma guerra no Oriente Médio, mais especificamente entre a Síria e Turquia, em uma região chamada de Antioquia. Acredite, mas não era 2015. Era 1913 e o Império Turco Otomano preocupado em criar uma nação turca racialmente homogênea, massacrava os armênios. Em um estado de conflito, com a Primeira Guerra Mundial batendo a porta, não havia lugar seguro para ninguém do lado de lá do Atlântico. “Eu estava no segundo ano da escola árabe, no momento que eu estava na porta de entrada da cidade, o meu professor, já falecido, me disse: "Sedosse – Sedosse é meu nome em árabe –, dá-me a sua mão e me acompanha." Ele me pegou do centro da cidade e me levou para a casa do consulado, que era a um quarteirão. Toda a família cristã estava escondida lá pra não serem massacrados. Naquela época, os turcos, que estavam massacrando os armênios, pegaram meu irmão mais velho, puseram no chão, pegaram a faca. Iam degolar. Veio um outro turco, disse para ele: "Não, larga, esse aqui é cristão, não é armênio." Os turcos estavam matando os armênios e pegaram o meu irmão por engano. Meu irmão já estava com a passagem pronta para vir ao Brasil, ficou doente um ano.” Contou meu bisavô Theodor (nome traduzido para o português).

Assim, a família Bittar arrumou as malas e veio para o Brasil um ano depois em uma viagem que durou 60 dias no porão do navio. Pai, mãe e 6 filhos recomeçaram a vida como mascates em Santos, vendendo fósforo, outras miudezas e consertando sapatos. “A gente andava pela rua: "Ô, turquinho, vem cá." Chegava lá: "O que é?" "Dá um cadarço, dá um carretel de linhas 50, 40." Saía de manhã, voltava em casa à noite. Meu pai mesma coisa. Às vezes, chegava hora de almoço e nem voltávamos pra casa. Entrávamos num bar que era já conhecido e a gente pedia um pão com mortadela. Pronto! Almoço!  .

O tempo passou e as coisas foram melhorando, a família abriu uma pequena loja de tecido em Santos e meu bisavô foi se aventurar por conta própria. Voltou para a sua cidade natal e voltou casado – desses casamentos arranjados mesmo a moda antiga, nada de paixão, nada de namoro. “ A minha tia já falecida, conversa vai conversa vem, diz: "Ó, Sedosse, você vai levar uma companhia junto com você pro Brasil." "O que é isso? Eu não vim para isso." "Vem cá." Entramos lá na casa vizinha e ela disse: "Olha, essa daqui vai ser a sua mulher." "Mas eu não vim para casar!" "Mas você vai casar." Sorte! Destino!”. Minha bisavó Nazira tinha 14 anos e ele por volta dos 24. Depois de 72 anos juntos, ela faleceu primeiro aos 86 anos, achávamos que ele iria morrer também ao enterrar o amor da sua vida.
Família Bittar
Eles voltaram para o Brasil, se estabeleceram em Porto Alegre e depois, vieram para São Paulo com os filhos. Theodor ganhava a vida vendendo sapatos na Rua Voluntários da Pátria e depois na Rua José Paulino, até que decidiu se mudar: “A Rua José Paulino tinha depósito cerveja e minha razão de sair foi que chegaram as prostitutas naquela cercania toda. Fecharam todas as travessas, era só prostituição. Eu com duas meninas em casa, disse pra minha mulher: "Vamos embora." Foi o destino!”.

Calçados Bittar
Na São Caetano, tudo começou com uma loja de sapatos também – Calçados Bittar. Era década de 40. Nessa época, a rua era lotada de mulheres e lojas de tecido.

Foi assim, que seguindo a fama do povo árabe para os negócios, Theodor juntou a fome com a vontade de comer e abriu a primeira loja de vestidos de noiva, que daria origem a uma rua inteira e faria parte do sonho de tantas mulheres. 

Theodor frequentou a rua até a década de 90, era conhecido por todos, mas sua história somente foi
reconstruída graças a um projeto do Museu da Pessoa – o Memórias do Comércio de São Paulo, que buscou recuperar a origem dos principais centros comerciais – e mesmo para a família (que contava com os 6 filhos, mais de 25 netos e quase uma centena de bisnetos) foi uma grande surpresa saber de sua trajetória.

Existe um mundo que se cruza e se encontra. Talvez a estimativa esteja certa - entre duas pessoas quaisquer no mundo existam somente 4 elos de ligação. Uns escrevemos, contribuímos, mudamos, transformamos, ainda que involuntariamente, as páginas da vida dos outros sucessiva e reciprocamente.  

Se você quiser mais detalhes dessa biografia e outras tantas histórias de vida, visite o site:  http://www.memoriasdocomerciosp.museudapessoa.net/index.php/pessoa/historia/4059#.Vg_VlC5Viko
Arquitetura da Rua São Caetano ainda guarda muito do seu passado -  Todos os direitos reservados 
  • por Hélio Bertolucci Jr.- http://www.panoramio.com/photo/25028493

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